Recuperação judicial de fundação de direito privado sem fins lucrativos
- cantoeidelveinadvo
- 4 de dez. de 2023
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A Fundação Universitária de Cardiologia (FUC) teve deferida a recuperação judicial, na data de 26/11/2023, nos autos do processo n. 5245072-73.2023.8.21.0001/RS. A decisão é inovadora, visto que a entidade recuperanda se trata de fundação de direito privado, sem fins lucrativos, vinculada a área da saúde e da educação. A decisão de processamento da recuperação é de lavra do insigne Magistrado Gilberto Schafer, transcrita a seguir:
RECUPERAÇÃO JUDICIAL. FUNDAÇÃO. Análise hermenêutica do conceito de empresa a partir da necessidade de uma Tutela Jurídica adequada e nos valores constitucionais envolvidos. Proteção aos Direitos Fundamentais de promoção à saúde e ensino. Atividades de relevância social inegável desenvolvida pela Fundação Universitária de Cardiologia. Atendimento ao SUS. Hospital de Referência na Cardiologia. Leitura sistemática de outros diplomas normativo que prestigiam atividades econômicas (e sociais) para incluí-lo no conceito de empresa. Possibilidade de atuação excepcional do Poder Judiciário, em função de noras atributivas de poderes aos Magistrados (art. 8º do CPC). Teoria da mão dupla: a parte autora ficará sujeita à liquidação coletiva, como a falência. DEFERIDO O PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL.
No caso em análise há o evidente interesse coletivo e social a ser preservado, visto que a fundação de direito privado administra uma série de hospitais no Estado do Rio Grande do Sul e fora deste, especificamente em Brasília, a fim de atender ao interesse público atinente à saúde e ao ensino. Neste aspecto a Fundação Universitária de Cardiologia possui programas de cursos técnicos, bem como cursos de mestrado e de doutorado acadêmicos, o que atesta a relevância econômica do empreendimento.
A questão controvertida é quanto a prevalência de interesses jurídicos de ordem pública vinculados à saúde e à educação, o que, em tese, permitiria a utilização de um procedimento de natureza processual e de igual ordem pública, a fim de acolher situação de crise financeira de fundação privada. Em se tratando de uma fundação sem fins lucrativos, poder-se-ia dizer que, não estaria presente um dos elementos da definição de sociedade empresária, disposto no art. 981 do CC, qual seja, o intuito de lucro, isto é, o ganho financeiro a ser auferido.
A par disso, para deferir o processamento da recuperação judicial, o ínclito Magistrado fundamenta a sua decisão utilizando o parâmetro de direito material da satisfação otimizada dos credores, legitimando a pretensão de recuperação judicial de entidade privada civil com base na teoria do agente econômico, de sorte a ampliar a definição de sociedade empresária. Ainda, adota a premissa de que a fundação recuperanda busca realizar fins coletivos e sociais, a qual, segundo o seu entendimento, a qualificaria como sociedade empresária, de acordo com a função disposta no art. 966 da lei civil, tendo em vista o diálogo das fontes nesta matéria relativa a serviço público atinente à saúde e ao ensino.
Entretanto, poder-se-ia objetar o pedido de recuperação com base em dois óbices, o primeiro, o caráter civil de fundação, sem fins lucrativos, e não empresarial em sentido estrito; o segundo, a denominada teoria de mão dupla, ou seja, estar-se-ia sujeitando sociedade civil as duras penas da falência, com responsabilidade civil e criminal, que exige a figura jurídica do empresário ou sociedade empresária para se tipificar esta última.
Outro ponto que merece ser levado em conta, é o fato de que alguns dos principais credores não seriam abarcados na recuperação judicial, pois, em tese, os créditos de natureza fiduciária não se sujeitam a recuperação judicial, os quais são pertencentes às instituições financeiras, como vem entendendo o STJ, precedente do REsp 1.979.903-SP de lavra do culto Ministro Marco Aurélio Bellizze. De outro lado, os créditos tributários também não se submeteriam a recuperação judicial, ou sequer estariam sujeitos a suspensão do curso das execuções fiscais diante do ingresso da recuperação judicial. Saliente-se que estas duas espécies de créditos representariam percentual elevado, na mais das vezes, do passivo de determinada sociedade empresária.
Há divergência doutrinária e na jurisprudência quanto ao tema, daí a importância de decisão diversa dos dogmas clássicos, a fim de se permitir a discussão jurídica, de sorte a alinhar a jurisprudência quanto à solução mais benéfica à sociedade a um custo menor para todos os atores envolvidos.
O escritório Canto & Eidelvein Advogados está à disposição para esclarecer dúvidas relacionadas à esta notícia e a qualquer assunto relacionado à área.
Jorge do Canto
Advogado e sócio do escritório Canto & Eidelvein Advogados, especialista em Direito Empresarial.