A responsabilidade do gestor esportivo no futebol à luz da Lei Geral do Esporte (Lei n. 14.597/23)
- cantoeidelveinadvo
- 19 de mar. de 2024
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Introdução
Nos últimos anos, o futebol brasileiro tem chamado a atenção de investidores de dentro e fora do Brasil, especialmente após a aprovação da Lei n. 14.193/2021 (Lei da Sociedade Anônima do Futebol – SAF). O ambiente favorável para investimentos, tem potencializado novas fontes de captação de recursos para clubes de futebol que, por sua vez, estão aumentando os investimentos em sua atividade¹.
Dentro deste contexto, o mercado do futebol está cada vez mais complexo e exige profissionais especializados que conheçam as regras de gestão corporativa, de conformidade legal e regulatória, de transparência e de manutenção da integridade da prática e das competições esportivas. Tais requisitos são essenciais para a promoção e a manutenção da higidez da ordem econômica esportiva. Assim, a figura do gestor esportivo ganha importância para garantir o sucesso e o desenvolvimento sustentável dos clubes e organizações esportivas.
Por outro lado, em razão do relevante interesse social no esporte, é importante referir que, conforme a legislação nacional, cabe ao poder público zelar pela higidez da ordem econômica esportiva. Dessa forma, a gestão esportiva é um tema de interesse público que transcende as fronteiras dos campos e das quadras, envolvendo aspectos éticos, sociais, econômicos e legais.
No âmbito da Lei n. 14.597/23 (Lei Geral do Esporte ou LGE), a responsabilidade do dirigente é um elemento crucial para garantir a integridade e o desenvolvimento sustentável do ambiente esportivo. Nesse artigo, exploraremos os princípios, diretrizes e obrigações referentes à gestão esportiva presentes nos artigos 57 a 69 da Lei n. 14.597/23, destacando a importância da gestão transparente e responsável para o cenário esportivo nacional.
Princípios e diretrizes da gestão esportiva conforme a LGE
O artigo 59 da Lei n. 14.597/2023 estabelece os princípios fundamentais da gestão esportiva: (a) responsabilidade corporativa; (b) transparência; (c) prestação de contas; (d) equidade; (e) participação; (f) integridade esportiva.
A responsabilidade corporativa se caracteriza pelo dever do gestor esportivo de zelar pela viabilidade econômico-financeira da organização através da adoção de procedimentos de planejamento de riscos e de padrões de conformidade. Por sua vez, o legislador infraconstitucional definiu a transparência na gestão esportiva como a disponibilização pública das informações econômico-financeiras, gerenciais e pertinentes à preservação e ao desenvolvimento do patrimônio da organização.
Com relação à prestação de prestação de contas, este princípio se refere ao dever de os gestores prestarem contas de sua atuação de forma clara, concisa, compreensível e tempestiva, assumindo integralmente as consequências de seus atos e omissões. Em contrapartida, a equidade se refere ao dever de tratamento justo e isonômico de todos os gestores e membros da organização esportiva, considerados seus direitos, seus deveres, suas necessidades, seus interesses e suas expectativas.
Já o princípio da participação está consubstanciado na adoção de práticas democráticas de gestão direcionadas à utilização de meios que possibilitem a participação de todos os membros da organização. Por sua vez, a integridade esportiva corresponde a implementação de medidas que preservem a incerteza do resultado esportivo, a igualdade e a integridade dos competidores, evitando interferências indevidas que possam comprometer o esporte.
Com relação às diretrizes, o artigo 60 da LGE estabelece os requisitos mínimos para realização dos processos eleitorais, garantindo a formação de um colégio eleitoral composto por todos os filiados no gozo de seus direitos, com a possibilidade de diferenciação de peso dos votos. Além disso, a LGE prevê a defesa prévia em caso de impugnação do direito de participar da eleição, bem como a necessidade de convocação da eleição por meio eletrônico e edital em órgão de imprensa de grande circulação.
Ainda no que tange ao processo eleitoral, o legislador infraconstitucional se preocupou com a integridade do sistema de votação do processo eleitoral. Para tanto, estabeleceu a obrigação de que as organizações esportivas adotarem um sistema de votação seguro contra fraudes, admitindo a votação não presencial. Além disso, a LGE estabelece a garantia de acompanhamento da apuração pelos candidatos e pela mídia.
No que se refere às diretrizes relacionadas à transparência e responsabilidade financeira das organizações esportivas, a LGE garante aos integrantes das assembleias gerais o acesso aos documentos, às informações financeiras e aos comprovantes de despesas de contas. Por sua vez, o legislador infraconstitucional previu, no §2º, do artigo 61, que as organizações esportivas poderão oferecer em garantia seus bens patrimoniais, esportivos ou sociais, inclusive imobiliários ou de propriedade intelectual, na forma de seu estatuto, ou, se omisso este, mediante aprovação de mais da metade dos associados presentes à assembleia geral especialmente convocada para deliberar sobre este tema específico.
Outrossim, no §3º do artigo 61 da LGE, foram estabelecidas as condições para que essas organizações esportivas obtenham financiamento com recursos públicos ou façam jus a programas de recuperação econômico-financeiro, exigindo: (a) a divulgação transparente situação financeira da organização esportiva; (b) a apresentação de planos de resgate, de investimento e de provimento de credores trabalhistas; (c) a garantia de independência dos conselhos de administração e fiscalização, quando houver; (d) a adoção de um modelo de gestão profissional e transparente; e (e) a submissão de demonstrações financeiras acompanhadas de relatórios de auditoria. Adicionalmente, há previsão nos §§ 4º e 5º da LGE que os recursos do financiamento devem ser prioritariamente destinados à quitação de débitos fiscais e trabalhistas, e, subsidiariamente, para a construção ou melhoria de arenas esportivas, desde que apresentem o orçamento das obras à instituição financiadora.
Ainda, no que se refere às diretrizes relacionadas à demonstração financeira e apresentação de contas, o artigo 63 da Lei n. 14.597/2023 impõe obrigações às organizações esportivas envolvidas em competições de atletas profissionais, excluindo as de pequeno porte. As organizações esportivas devem preparar demonstrações financeiras separadas por atividade econômica, submetê-las à auditoria independente e publicá-las em um site próprio ou da organização regional até o último dia útil de abril do ano seguinte. Além disso, devem apresentar contas e relatórios de auditoria ao Conselho Nacional de Esporte (CNE) sempre que receberem recursos públicos. A violação dessas obrigações resulta em penalidades, como a inelegibilidade dos dirigentes por 10 anos e a possibilidade de afastamento e nulidade dos atos praticados pelos dirigentes responsáveis pela infração.
As organizações esportivas que descumprirem o artigo 63 também ficam sujeitas ao afastamento de seus dirigentes e à nulidade dos atos praticados em nome da organização após a infração, respeitando o direito de terceiros de boa-fé. Para fins deste artigo, considera-se dirigente o presidente da organização esportiva ou aquele que faça as vezes, bem como qualquer dirigente responsável pela infração, ainda que por omissão. Essas medidas têm como objetivo garantir a transparência e a responsabilidade financeira das organizações esportivas envolvidas em competições profissionais.
Com relação às diretrizes referentes à garantia da integridade esportiva e da incerteza do resultado esportivo, o legislador infraconstitucional estabeleceu, no artigo 62 da LGE, restrições à participação simultânea de pessoas físicas ou jurídicas na gestão ou detenção de capital de organizações esportivas que promovem a prática esportiva profissional e que estejam disputando a mesma competição.
Essas restrições aplicam-se quando uma mesma pessoa ou entidade controla ou administra direitos que integram os patrimônios de múltiplas organizações ou quando há relação contratual que resulte na exploração conjunta de tais direitos. As proibições estendem-se aos cônjuges, parentes até o segundo grau das pessoas naturais e entidades relacionadas às pessoas físicas ou jurídicas envolvidas (sociedades controladoras, controladas ou coligadas; fundos de investimentos; condomínio de investidores; ou outra forma assemelhada que resulte participação concomitante). A violação dessas regras resulta na inabilitação das organizações esportivas para receber recursos públicos e verbas de concursos de prognósticos e loterias. No entanto, algumas exceções são previstas, como contratos de administração de arenas esportivas, patrocínio, licenciamento de marcas e propaganda, desde que não envolvam a administração direta ou cogestão das atividades esportivas.
Deveres do Gestor Esportivo
Para fins da Lei Geral do Esporte, considera-se o gestor esportivo aquele que exerce, de fato ou de direito, o poder de decisão na gestão da organização, incluindo aqui seus administradores (artigo 64). Dessa forma, pode-se considerar o gestor esportivo, o presidente do clube ou aquele que faça as vezes, os administradores, dirigentes e os diretores (futebol, financeiro, recursos humanos, etc.).
Conforme visto anteriormente, a Lei Geral do Esporte estabelece diretrizes claras para a gestão transparente e responsável das entidades esportivas. Nessa senda, os gestores esportivos devem zelar pela transparência e legalidade na gestão, promovendo a prestação de contas e garantindo o acesso à informação por parte dos membros e da sociedade em geral. A transparência é fundamental para prevenção de práticas ilícitas e de gestão temerária, assegurando a legitimidade das atividades esportivas.
Além disso, o parágrafo único do artigo 64 da LGE estabelece que os gestores esportivos devem agir com cautela e planejamento de riscos, atentando-se aos deveres de diligência, lealdade e informação. Com relação ao dever de diligência, exige-se que o gestor administre a organização com competência e com o cuidado que seriam usualmente empregados por todo homem digno e de boa-fé na condução dos próprios negócios. No que tange à lealdade, proíbe-se o gestor de usar informações em benefício próprio ou de terceiros. Por fim, no que tange ao dever de informação, refere-se à obrigação de o gestor atuar com transparência nos negócios da organização e de comunicar imediatamente as situações que possam representar riscos financeiros ou de gestão, bem como informar sobre eventuais conflitos de interesse com as atividades da organização esportiva.
Não poderia, portanto, um gestor esportivo, representando uma organização esportiva, negociar com a sua empresa de construção civil a reforma de uma arena esportiva ou, ainda, realizar negócios com a empresa de seu filho que representa atletas vinculados ao clube.
Essas obrigações e deverem visam garantir uma gestão responsável e ética nas organizações esportivas, promovendo a transparência, a integridade e a confiança entre os envolvidos. Ao estabelecer padrões de conduta claros para os gestores esportivos, a lei busca proteger os interesses das organizações e de seus stakeholders, promovendo a governança adequada e contribuindo para o desenvolvimento sustentável do esporte. O cumprimento desses deveres não apenas fortalece a reputação das organizações esportivas, mas também contribui para a credibilidade do ambiente esportivo como um todo, incentivando investimentos e promovendo o crescimento do setor.
Gestão temerária e a responsabilidade dos dirigentes no futebol
Assumir a gestão de um clube de futebol representa uma das maiores honrarias para profissionais que atuam na área, especialmente se forem torcedores das agremiações que estiverem gerindo. Todavia, tal missão representa, também, um ônus de igual tamanho e proporção.
Nesse sentido, àqueles que desejam assumir tal responsabilidade, devem buscar o aperfeiçoamento profissional constante e o assessoramento legal para compreender a pluralidade de normas e regulamentos incidentes à atividade desempenhada. Esse alerta se dá pelo fato de a Lei Geral do Esporte prever sanções para os dirigentes que descumprirem as suas obrigações legais e estatutárias.
Sinala-se que o artigo 66 da LGE prevê que os dirigentes das organizações esportivas, independente de sua estrutura jurídica, têm seus bens particulares sujeitos ao disposto no artigo 50 do Código Civil². Outrossim, conforme o §2º do artigo 66 da LGE, os dirigentes de organizações esportivas respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados e pelos atos de gestão irregular ou temerária ou contrárias as obrigações estatutárias.
Por outro lado, o artigo 67 da LGE define atos de gestão irregular ou temerária como àqueles praticados pelo dirigente que revelem o desvio de finalidade na direção da organização ou que gerem risco excessivo e irresponsável para o seu patrimônio, apresentando um rol exemplificativo de situaçõe
(a) aplicar créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros;
(b) obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte ou possa resultar prejuízo para a organização esportiva;
c) celebrar contrato com empresa da qual o dirigente, seu cônjuge ou companheiro ou parentes, em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau sejam sócios ou administradores, exceto no caso de contratos de patrocínio ou doação em benefício da organização esportiva;
(d) receber direta ou indiretamente (por meio de cônjuge ou companheiro, parentes até terceiro grau; ou por meio de empresa ou sociedade civil da qual o dirigente ou conjunge, companheiro ou parente até terceiro grau sejam sócios ou administradores), qualquer pagamento, doação ou outra forma de repasse de recursos oriundos de terceiros que, no prazo de até 1 (um) ano, antes ou depois do repasse, tenham celebrado contrato com a organização esportiva;
(e) antecipar ou comprometer receitas em desconformidade com o previsto em lei;
(f) não divulgar de forma transparente informações de gestão aos associados;
(g) deixar de prestar contas de recursos públicos recebidos.
Registra-se que, em qualquer hipótese, o dirigente não será responsabilizado caso não tenha agido com culpa grave ou dolo; ou comprove que agiu de boa-fé e que as medidas realizadas visavam a evitar prejuízo maior à entidade.
De acordo com o artigo 68 da LGE, os dirigentes que praticarem atos de gestão irregular ou temerária poderão ser responsabilizados por meio de mecanismo de controle social internos da organização, sem prejuízo da adoção de providências necessárias à apuração de eventuais responsabilidades civil e penal. Igualmente, caso seja constatada a responsabilidade, o dirigente será considerado inelegível por 10 anos para cargos eletivos em qualquer organização esportiva.
Por fim, no que tange à responsabilidade do dirigente, conforme o artigo 69 da LGE, caberá à organização esportiva, mediante prévia deliberação da assembleia geral, adotar medida judicial cabível contra os dirigentes para ressarcimento dos prejuízos causados ao seu patrimônio. Caso a organização esportiva não possua assembleia geral, competirá ao conselho fiscal adotar os procedimentos previstos nesse artigo.
Conclusão
Diante da análise dos princípios, diretrizes e obrigações presentes na Lei Geral do Esporte (LGE), é possível concluir que a gestão esportiva no Brasil enfrenta desafios significativos, mas também conta com um arcabouço legal que busca garantir a transparência, integridade e responsabilidade na administração das organizações esportivas.
A implementação desses princípios e diretrizes exige não apenas o cumprimento formal das disposições legais, mas também uma mudança cultural e de mentalidade por parte dos gestores esportivos. Assim, a implementação da gestão corporativa, de conformidade legal e regulatória, de transparência e de manutenção da integridade da prática e das competições deve ser internalizada nas práticas diárias de gestão, promovendo uma relação de confiança com os stakeholders e a sociedade em geral.
A responsabilidade dos dirigentes é um elemento-chave nesse processo, pois são eles os agentes responsáveis pela condução das organizações esportivas. A LGE estabelece claramente os deveres e as responsabilidades dos dirigentes, prevendo sanções para aqueles que agirem de forma irregular ou temerária.
A existência de mecanismos de controle e fiscalização internos, aliada à possibilidade de responsabilização civil e penal, demonstra o compromisso do legislador em garantir a efetividade das normas e a proteção do interesse público no esporte.
Portanto, a gestão esportiva no Brasil está em constante evolução, impulsionada pela necessidade de profissionalização e pela busca por melhores práticas de governança. O desafio agora é promover a disseminação desses princípios e diretrizes em todas as esferas do esporte brasileiro, assegurando um ambiente ético, transparente e sustentável para o desenvolvimento do futebol e de outras modalidades esportivas no país.
O escritório Canto & Eidelvein Advogados está à disposição para esclarecer dúvidas relacionadas a este artigo e a qualquer assunto relacionado à área.
Diego Eidelvein do Canto
Advogado e sócio do escritório Canto & Eidelvein Advogados, especialista em Direito Desportivo.
[1] Estima-se, por exemplo, que os clubes brasileiros da Série A do Campeonato Brasileiro ultrapassaram a soma de R$ 1 bilhão gastos em contratações na primeira janela de transferências da temporada de 2024. O valor superar em 45% o montante gasto pelos 20 times da Série A no mesmo período do ano de 2023. Informações disponíveis em: https://www.estadao.com.br/esportes/futebol/clubes-da-serie-a-ja-igualam-investimento-realizado-em-contratacoes-durante-todo-o-ano-de-2023/.
[2] O referido artigo está assim disposto: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. § 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. § 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. § 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.